La Montagne

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Fechados contra o Mundo e seu Rei, Espírito contra Matéria!

sábado, 31 de agosto de 2013

Os mitos fundadores do Catarismo atual

Aviso: esta postagem é um tanto quanto longa... umas 10 páginas no Word - mas não podia ser de outra forma, e quebrar a postagem em partes menores quebraria, creio, a continuidade do pensamento.

Como sei que muita gente pode querer ler um tanto de cada vez, adianto que o texto é dividido em cinco sub-tópicos, a saber,

PARTE I: “MITO” COMO MARCO FUNDADOR DE UMA CONSCIÊNCIA
PARTE II: A LINHA DE CONSCIÊNCIA DO CATARISMO: DA SUA CONCEPÇÃO ATÉ O PRESENTE
PARTE III: O PRIMEIRO MITO. NOSSO PASSADO. MONTSÉGUR: O MODELO PERFEITO PARA O SER
PARTE IV: O SEGUNDO MITO. NOSSO PRESENTE. O CALVÁRIO DAS SOLOVKI COMO REALIDADE ARQUETÍPICA DO MUNDO MATERIAL
PARTE V: O TERCEIRO MITO. NOSSO FUTURO. O ÚLTIMO GRITO QUE CLAMARÁ À PARACLESE DIVINA A DESTRUIÇÃO DO MAL


“MITO” COMO MARCO FUNDADOR DE UMA CONSCIÊNCIA

Existe uma progressão dos seres, no universo da matéria de Jehova, que vão desde seres brutos, com um grau de existência ínfimo (abaixo dos vírus, na verdade), passando progressivamente para seres sencientes (que possuem sentidos fisiológicos) e finalmente conscientes (também aqui há graus distintos de consciência, mas isto fica para outro momento).

O verdadeiro nascimento de um ser consciente não é exatamente o momento do parto, pois até então a criança é um ser que possui apenas faculdades fisiológicas e um potencial, não realizado, para a consciência. A consciência nasce quando a criatura primeiro pensa em si como o sujeito de alguma ação ou fato: este primeiro “eu sou...” ou “eu estou...” possui no “eu” o marco zero do fio condutor da história desse ser, da sua sucessão de fatos e pensamentos marcantes que ele marcará como sendo a “história da sua vida”, o novelo de Ariadne que é a própria substância da consciência.

A partir do momento em que haja um “eu” em torno do qual a sucessão de fatos do tempo que transcorre no mundo se organiza, há consciência e um grau de existência superior ao dos seres apenas sencientes mas não conscientes.

Assim também para uma doutrina filosófica, mística ou política, seu nascimento, desenvolvimento e morte estão ligados a uma “consciência” gregária, alimentada pelo coletivo humano. Os marcos significativos desse fio histórico serão fatos históricos (o nascimento, coroação ou martírio de algum líder, alguma batalha ou rebelião, etc, etc, etc), ou mitos fundadores (a batalha ritual de Rômulo e Remo, a aparição ou revelação de alguma divindade, a mudança de uma era astrológica, etc, etc, etc).

Deve-se entender com isso duas categorias de marcos. Enquanto os fatos históricos, por si mesmos, são úteis para delimitar espacial e temporalmente a doutrina em questão, informando o que ocorreu com ela num determinado ponto do espaço-tempo, os mitos possuem uma qualidade dupla. Sejam fatos temporalmente precisos ou não, e sua factibilidade pode ser discutível ou não, mas um Mito fundador informa o “Si Mesmo” da Doutrina não apenas um marco no tempo, mas uma qualidade inegável, um destino arquetípico que a doutrina está chamada a cumprir, uma característica que compõe e define a essência desta doutrina.

Pode-se inclusive traçar um paralelo entre a mera historiografia de uma doutrina com a consciência de uma criança pequena, que sabe por exemplo que vai comer de manhã, brincar, dormir uma certa hora da tarde, comer de novo, etc, etc – a historiografia é sempre factual, e dificilmente qualitativa (se ignorarmos as tendências e vieses ideológicos dos autores). Enquanto isso, um Mito fundador equivale, em qualidade da consciência, a uma epifania ou reflexão profunda que um adulto já sábio faz de si mesmo, sintetizando sua essência e vocação em um mito arquetípico que se repete, como padrão, ao longo da vida deste adulto: um padrão revelado à consciência através das chaves semióticas do Mito.

Mais ainda: a exploração, aprofundamento e assimilação das chaves semióticas contidas nos mitos é a própria essência de carregar um Mysterium – esperava-se que um homem, a quem um Mistério fora revelado, como os Koans budistas, se debatesse nestas chaves e buscasse enxergar, através de seu prisma, um padrão, uma essência, uma qualidade inegável pertencente ao íntimo de seu ser.

A LINHA DE CONSCIÊNCIA DO CATARISMO: DA SUA CONCEPÇÃO ATÉ O PRESENTE

Assim, de fato, é com o Catarismo. Historicamente, a doutrina Cátara, herdeira de uma cadeia de continuidade gnóstica quase-acidental, teve sua vida durante um período delimitado da Idade Média, e depois do martírio a que foram submetidos, os Cátaros passaram à “História”, à “Memória” da humanidade na forma de relatos escritos extremamente parcos e distorcidos, da mesma maneira que as pessoas costumam falar livremente sobre a vida de um “falecido” que não esteja ali para redarguir.

O Catarismo medieval, típico da Provença, Itália e do sudoeste alemão, foi um período na vida do Catarismo como doutrina: evoluindo desde os tempos pré-natais dos cultos indo-iranianos ao Fogo Purificador, passando na infância pelas diversas formas de gnosticismo cristão das escolas egípcia e greco-síria, o Catarismo definiu a si mesmo no Languedoc com um nome simples, propositalmente simplório: les Bons Hommes, os Homens Bons, adeptos da divina Bonomia.

Propositalmente simplória era também sua doutrina, que através dos olhos da Gnosis focou seu olhar no único objeto ao qual era permitido e lícito, naqueles tempos, mirar: o Cristianismo católico. Através deste olhar, surgiu uma reação espontânea de repulsa e desejo de reforma, de purificação: aqueles Bons Homens, que fizeram votos de Catarse enquanto durassem suas vidas, quiseram estender a graça da Catarse à cultura europeia, ao Cristianismo católico, purgando seus desvios e erros.

Os Iniciados Perfeitos capitalizaram esse olhar espiritual, espontâneo, daquele povo medieval simplório e de corações transparentes, num intento reformista que, num primeiro momento, foi uma renovação da declaração de guerra ao Demiurgo e aos seus sequazes (infernais e terrenos), e num segundo momento, deu a muitos homens a dádiva do Martírio, através do qual a Última Gota do sangue de cada homem caído se somou ao Cálice, transmutado e dignificado por Epinoia, Minne, a Mãe Perfeita que transubstanciou a consciência pura daqueles homens em Luz Suprasubstancial no seio do divino Cálice, que é o assento da Comunidade Cátara.

Se hoje falamos em Catarismo, não se deve ser simplista em assumir que se está fazendo uma simples reencenação, um ressurgimento de uma forma do passado: antes, e mais importante, a essência deve ser mantida sobre a forma, e a essência está nas premissas fundamentais do Cátaro, as Quinze Pérolas que correspondem aos quatro trios de Luminares que guardam a obra do Deus Incognoscível, mais a Divina Trindade, que chamamos a Protennoia Trimórfica.

Encaramos hoje um mundo muito mais multifacetado, disperso, e muita informação crucial foi redescoberta ou desenvolvida, que não estava disponível aos Iniciados da Montségur original. Enquanto aqueles homens puros redescobriam sozinhos, através da Voz de seus Espíritos, o grande engano do Demiurgo, esse mesmo pensamento já havia sido redescoberto por outros homens, no Egito de oitocentos anos antes, e seus enunciados estavam ocultos em uma caverna em Nag Hammadi. Sinais de outros homens que pensaram e sentiram o mesmo se espalham pelo mundo antigo. 

Nada mais natural do que empossarmos os mais potentes destes textos e sinais em nossa base canônica. Se a espiritualidade autêntica e a profundidade de pensamento estão morrendo com a decadência do mundo, por outro lado temos o privilégio de viver em uma era inundada de informação, o que não tem precedente em outros momentos históricos. Com a abertura de registros e materiais, a base propícia para a doutrina Cátara se ampliou demais, e não é mais preciso nos identificarmos artificialmente com o cristianismo medieval: somos a Doutrina do verdadeiro Kristos, que jamais deve ser confundido com a farsa essênia (nos aprofundaremos neste ponto no próximo artigo, que trata da relação do Catarismo com várias outras religiões). 
Por outro lado: ignorar o fluxo enorme de informação dos últimos séculos, desde que Guillaume de Bélibaste profetizou o Reverdecer do Laurel até hoje, seria desleal no sentido de que estaríamos idolatrando uma forma fixa do passado, no lugar da essência da Doutrina exposta nas Quinze Pérolas. Seguindo a analogia da consciência cátara com a consciência de um indivíduo, se um homem fica longamente em coma e desperta, décadas depois, seria tolo de sua parte pretender viver o passado. Deverá enfrentar a vida presente com aquilo que ele é essencialmente, o núcleo de seus valores e de sua honra.

Claro que aqui se deve tomar o máximo de cuidado com oportunismos. Diversas doutrinas “reconstrucionistas” usam do mesmo expediente, o do imperativo de adaptação e assimilação da realidade atual, como escusa para introduzir deformações grotescas, que apenas servem a agendas de indivíduos particulares que não desejam ver ressurgida a essência de uma doutrina ou religião autenticamente dissidente, incompatível com a perversidade da era contemporânea, e por isso a deformam para torna-la inócua. Por isso deve-se ser leal, ferreamente leal, às bases canônicas que, sendo fruto de uma síntese cuidadosa, são as bases constituintes do pensamento cátaro. O que florescer daí – ritos e liturgias, textos e orações – será antes filtrado através dos preceitos do cânon, evitando a introdução de perversões. Em resumo: o que se espera de uma doutrina sólida e autêntica não é que ela se molde ao espírito de cada época, especialmente considerando a era maligna em que vivemos, mas que, permanecendo firme em si, seja uma resposta direcionada para o tempo atual. É um terreno extremamente delicado, no qual se deve contar que cada peregrino use o máximo de suas faculdades intuitivas, e peça sempre ao Deus Incognoscível por orientação e catarse, para não cair em uma das diversas armadilhas do Demiurgo. E acima de tudo, ser puro também no sentido de não contemporizar, não ocultar, não mentir, não ceder.

Antes de falarmos em bases canônicas, em ritos e estruturas litúrgicas, entretanto, é crucial que se entenda quais são, então, os Mitos fundadores que provêm à doutrina Cátara seu mais profundo senso de identidade.

O PRIMEIRO MITO. NOSSO PASSADO. MONTSÉGUR: O MODELO PERFEITO PARA O SER

“Bela e solene Carcassonne! Em nenhum outro lugar do Ocidente existe outra como tu. Como outrora, se alçam as muralhas maciças de suas torres e seteiras. E elas falam!
Hoje estive na Tour de l’Inquisition, a Torre da Inquisição. Nela teve fim o drama albigense. Aqui os inquisidores fizeram emparedar os defensores do castelo de Montségur que não foram queimados na fogueira. Quatrocentos. Entre os emparedados também se achava um Cavaleiro que, uma vez frente à Cruz, teria proclamado em voz bem alta que nunca desejaria ser salvo por este símbolo. Que símbolo de salvação ele teria desejado, então? O Gral?” (Otto Rahn, “A Corte de Lucifer”)

Seguindo uma lenta rota desde a Armênia, passando por Bulgária, Sérvia, Bósnia e Itália, o Catarismo clássico criou raízes com pregadores populares falando aos corações do povo na cidade piemontesa de Albi (de onde veio o termo Albigenses) e daí para todo o centro-sul da Europa ocidental.

À medida que tal movimento expansivo foi encontrando a resistência da Igreja institucionalizada, gradualmente os Cátaros começaram a subir as montanhas, literalmente, para escapar do mundo e se fortificar.

Longe de ser apenas um fato contingente, uma necessidade de momento de um período histórico, esse padrão é em si um mito, uma estrutura que se repete.

Os pregadores albigenses são o Espírito eterno reencontrado com sua realidade imutável, essencial. Tomado pelo ardor do Espírito Santo Divinizador, ele rompe com o Mundo, assume sua humilde veste negra – simbolizando que está morto para o mundo da matéria, não mais reflete e propaga os raios do Sol material – e sai em peregrinação vivendo e espalhando a verdade, denunciando, como o inocente Parsifal recém chegado em Camelot, a impureza e a malícia serpentina dos filhos de Jehova-Satanas, onde quer que tal malícia e tal impureza se encontrem.

O subir a montanha em si engloba todo um universo mítico, e místico. Há de se ler o Zaratustra de Nietzsche para compreender os seus cumes de montanha, assim como o Monte Vênus em Tannhäuser. Subir a montanha é resguardar-se interiormente do mundo, mas mais do que isso: porque morrer para o mundo e para a vida na Terra não é um suicídio existencial (nem físico!!!), nem um ato de apatia e amargura. Ao contrário, despreza-se o mundano e o físico por saber-se eterno e infinito, e subir a montanha é a busca do Espírito por silêncio e ares rarefeitos, por terras não trilhadas e limites não alcançados. É a busca pela pureza do Pleroma, que vai na direção contrária de Roma, do Mundo corrompido e doente.

O cume da montanha é o local da Catarse, da purificação absoluta. Legiões de doentes subiam ao forte cátaro de San Salvador buscando cura para a loucura ou para doenças debilitantes que achavam ser fruto de uma possessão. A força carismática dos monges Cátaros dava a esses doentes uma tal esperança supra-terrena, que nas proximidades da base do monte já se sentiam felizes, e segundo os contos que se dissolveram no tempo, subiam a montanha dançando ou cantando.

Os que buscavam o Consolamentum subiam a montanha (de San Salvador ou de qualquer outro forte ou caverna nas montanhas onde os monges Cátaros ofereciam a iniciação) de forma extremamente vagarosa, levando até meses. Durante esse período, eram instruídos na Catarse e iam deixando, “montanha abaixo”, suas impurezas humanas à medida que se livravam delas. No alto da montanha, a fortaleza, com um amplo pátio onde aqueles que já eram iniciados sem sabê-lo adentravam, contemplando em absoluto silêncio o “Oceano de Éter”, um estado mental que era como se respirassem a atmosfera de outro planeta, com apenas seus pés tangendo esta terra e este mundo...

“Ó suave Montanha! Pela noite, ressoam odes a Pyrena!”

Tal é o modelo arquetípico do Ser, para o Cátaro. Busca-se pela Catarse subir ao alto da sua montanha interior, no vazio e na quietude onde os pensamentos mundanos são ausentes, na negrura infinita onde se celebra a Sagrada Teogamia. E ali o ser cerca e fortifica a si mesmo, construindo o Castelo Interior que é o espelho microcósmico de Montségur.

A estranha construção de Montségur, construída com proporções e princípios que não são deste mundo, pertence a uma seleta lista de locais nos quais o Rei do Mundo e seus sequazes mais focaram seu ódio aterrador, e que os Arcontes mais temiam e mais incitavam e ordenavam seus servos para que os destruíssem – porque existem locais, que são destruídos, deturpados ou possuem seus símbolos originais distorcidos, justamente por serem lembranças vivas da nossa Herança espiritual, provas gravadas em pedra dura de que não somos deste mundo, e que enchiam o Espírito de nostalgia e desejo de retorno.

E mesmo nesta seleta lista, Montségur era especial. Este forte cátaro era, acima de tudo, o Assento do Gral na Terra, como jamais houve após sua destruição. O que não se deve entender de maneira leviana: não um cálice físico, o Gral, mas o receptáculo da Última Gota de todos os mártires e heróis que se elevaram aos mais altos céus pela honra na morte, pela superação na morte e Valor na luta contra o Demiurgo. Mais do que um mero receptáculo, o Gral é um instrumento de orientação – esta Última Gota de sangue é transubstanciada pela Sagrada Minne em Luz Suprasubstancial (a qual pedimos no Pater) que o Gral então derrama sobre a Terra, sincronizando todos os Espíritos adormecidos na vontade uníssona de Libertação, fazendo-os despertar da sua condição miserável de escravos de Jehova-Satanas!

Pois uma vez que o ser suba sua montanha, deixando o não-essencial para trás, purificando a si mesmo e recuperando sua dignidade de um verdadeiro Filho do Deus Incognoscível, ali, no ponto mais puro, remoto e silencioso possível, ele constrói seu forte e ali se isola – contra as investidas do demônio, contra a corrupção e a sevícia da própria alma.

E ali, naquele terreno (mental) tomado, cercado e isolado, no recôndito mais profundo de um coração que já não é mais humano, o Cálice será derramado, e o Ser será banhado pela Luz que fez os Arcontes tremerem de medo, pois era sua própria Origem à qual renegaram para se constituírem Senhores do Inferno. Com a luz dessa Luz, então, o Ser poderá enxergar, no alto, seu antigo lar, onde está e como alcança-lo...
              

O SEGUNDO MITO. NOSSO PRESENTE. O CALVÁRIO DAS SOLOVKI COMO REALIDADE ARQUETÍPICA DO MUNDO MATERIAL

“Acordem, seus tolos, para o massacre sangrendo que está ocorrendo. Afinal, o que vocês fazem não é apenas crueldade – vocês agem como Satanás, vocês que estão prontos para o fogo do inferno, na próxima vida que no caso de vocês será uma maldição terrível [...]” (discurso do patriarca Tikhon aos bolcheviques, 19/01/1918).

                Existem recônditos profundíssimos da História que não podem ser exatamente vistos, representados ou comprovados – não com a visão materialista e estúpida da historiografia, obcecada por uma materialidade de prova que a cega inevitavelmente para o passado profundo, mas sentindo com o sangue e com o espírito os sinais remotos e pálidos que chegam à nossa atenção.

                Nesse sentido, as ilhas Solovki parecem gritar ao Espírito buscador com sua história quase sempre obscura, como as tumbas inumanas atraíam a curiosidade dos heróis lovecraftianos.

                Um arquipélago no Mar Branco, a nordeste da Carélia russa, as ilhas Solovki guardam uma relação dual com o sagrado e o satânico que a torna um modelo arquetípico da existência do Espírito encarnado nesse mundo.

                Nas proximidades do Ártico, as Solovki possuem um microclima próprio, estranhamente ameno, com temperatura média anual de apenas 11 graus Celsius. Peculiaridades geográficas únicas no mundo tornam a região tão abundante em peixes que era possível pegá-los com a mão, entrando na água até o joelho. Seus primeiros habitantes eram povos paleo-siberianos (lapões) e posteriormente fino-úgricos (carelianos, vepps, kola), que visitavam as ilhas com dois propósitos: a pesca, e a realização de rituais obscuros envolvendo sempre os labirintos de pedra que abundam ali, em formatos de espirais simples, complexas ou labirintos clássicos.


                Os lapões atribuem a uma raça de gigantes a construção desses labirintos, que chamam a atenção por sua quantidade e densidade em uma área tão pequena, sem paralelos no mundo: existem cerca de 125 labirintos dessa idade e estilo no Hemisfério Norte, com 35 nas ilhas Solovki (um arquipélago de 320km²), com um grande número concentrado na ilha chamada Staraya Zayatsky, de apenas 1,5km². É impossível negar que haja algo de sacro nesse local. Nos últimos séculos, inclusive na era soviética, os dirigentes russos sempre deram uma grande importância às ilhas consideradas por muitos “o coração da Rússia”, “o centro espiritual do Norte”, ou nas palavras mais ousadas de J. Bereslavsky, um fortíssimo centro de energia Hiperbórea. Pedro o Grande foi se consagrar nas Solovki antes de empreender uma guerra contra a Suécia, e os mosteiros ortodoxos ali construídos chegaram a ter uma autoridade incontestável na igreja ortodoxa russa da era dos tsares.

                Além dos monastérios e igrejas, um forte do século dezessete permanece ali, e as ilhas já viram cerco tanto de tropas suecas, quanto de tropas do governo russo que depuseram um conjunto de monges que se rebelara contra a autoridade da coroa, dita corrupta e mundana. Mais de um movimento bélico para a purificação da igreja e da coroa tomou lugar nas Solovki.

                A riqueza da história das ilhas Solovki não cabe nesse blog. Como um local de  grande energia, e um possível passado atlante cujo legado foi passando, cada vez mais adulterado, pelos pescadores nômades cultores de labirintos, foi aproveitado para diversos fins, pela Igreja Ortodoxa, pela Coroa russa e depois pelos bolcheviques. Segundo o arquimandrita Ilarii, “o nome Solovki se tornou terrível na História da Rússia”.

                Ali, como modelo reduzido do mundo, foi um local onde o ser humano tentava cultivar o Espírito, e inclusive se criaram cercos com esse fim (como no alto das montanhas Cátaras), porém o interesse dos poderosos em explorar e verter aquele sangue espiritual para seus fins particulares transformaram as Solovki na “Ilha das Lágrimas”, um local de guerra e sofrimento, e uma prisão construída pelos poderosos para exilar os rebeldes que clamavam por pureza, justiça, beleza, enfim, pelos valores do Espírito. “Na Rússia, a prisão é mais do que uma prisão – as prisões russas alcançaram um nível inimaginável de humilhação da personalidade humana”, segundo Mokrousov: Na era dos tsares as Solovki já haviam se transformado em uma prisão, mas sua transformação definitiva no modelo arquetípico do Gólgota ocorreu sob o mando de Lenin.

                Após expropriar as terras da Igreja, Lenin emite em 1920 um decreto que cria, no antigo complexo de mosteiros, o “elefante” ou SLON – “Solovetsky Lager’ Osobogo Naznachenya” ou “Campo para Propósitos Especiais Solovetsky” (a palavra “slon” significa “elefante” em russo, e esse foi o apelido do campo que se tornou o primeiro dos Gulag soviéticos). Membro do Povo Eleito de Jehova-Satanas, Lenin foi um dos grandes sacrificadores que já verteram sangue em nome do Rei do Mundo; ele estabeleceu um campo de prisioneiros em Solovki aonde se experimentariam métodos – de tortura, experimentos médicos e psicológicos, de controle pelo medo – para serem amplamente usados a posteriori; daí o lema dos torturadores, “Hoje, Solovki. Amanhã – toda a Rússia”. Disse Lenin em um memorando para o Politburo, lido por Molotov em 19/03/1922:

“Agora, e apenas agora, quando as pessoas famintas estão à deriva e nas estradas milhares de corpos são empilhados, nós podemos, e portanto devemos, proceder com o confisco dos bens valiosos da igreja com a mais selvagem e impiedosa energia, não parando diante de qualquer resistência[...] quanto mais reacionários e burgueses conseguirmos com esse único tiro, melhor. Necessário ensinar essa audiência, para que depois de uma curta resistência eles nunca mais ousem pensar.” (V.I. Lenin)

                As Solovki então são um modelo, arquetípico decerto, um pequeno fractal do que é em essência o Abismo Terra. Toda a santidade e a energia espiritual dos antigos cultores de labirinto foram corrompidas para que o Homem não recupere sua Epinoia, não ouça o canto de Minne, e no lugar dos Mistérios sagrados, prisão, humilhação, tortura e trabalhos forçados. E quando acontece a instauração da Tirania de Ferro dos sequazes do Rei do Mundo, todos sacerdotes em segredo, versados no sacrifício do sangue puro e na corrupção da terra, o sofrimento atinge seu ápice. Usando breves descrições de prisioneiros, obtidas pelo serviço secreto polonês:


Prisioneiro M. Nesterov: “Construção do Inferno”.
Prisioneiro O. Yafa: “O sofrimento é o denominador comum aqui”.
Prisioneiro O. Volkov: “Na frente dos nossos olhos eles surravam as pessoas, as forçavam a correr, as assustavam com tiros de festim que vinham das torres; os que caíam eram erguidos e os guardas chutavam seus rostos até que estes se tornavam uma pasta de sangue”.
Prisioneiro E. Solovyev: “prisioneiros eram forçados a comer excrementos; outros tinham a pele do ombro retirada. Os que clamavam por Deus eram crucificados nus no frio”.
Relatório da polícia polonesa, USLAG, 1932: “A relação dos guardas com os prisioneiros beira o sadismo. Castigos característicos: surra de bastão, banhos no frio, imersão em buracos no gelo, exposição ao frio por horas.

                Assim como nas eras mais cruéis do industrialismo, e do neoliberalismo que está sendo plantado hoje, os prisioneiros recebiam uma ração proporcional ao seu trabalho: os que realizavam as tarefas mais pesadas recebiam 300g de pão, os que faziam trabalhos leves, metade disto, e os doentes, inválidos e idosos eram deixados para morrer de fome. Ali foi o primeiro laboratório de técnicas de punição-e-recompensa, servindo de modelo para que toda uma humanidade desesperada para sobreviver aprenda a vender a alma em trabalhos degradantes por cada vez menos.

               
Está é uma descrição muito curta da Tirania de Ferro satânica imposta por Lenin e a GPU (polícia secreta soviética, antecessora da Cheka). Os resultados dos experimentos psicossociais foram aplicados pelos poderosos ao longo do mundo, em uma série de ondas que estão ainda longe de terminar – e já se pode entrever o dia em que o mundo inteiro será uma cópia fiel das Solovki, o Gólgota onde os últimos mártires do Espírito clamarão a Kristos Luz pela intercessão direta, resoluta, violenta e final do Deus Incognoscível, impulsionados pelo desespero e pelo nojo ao mundo.

                Aqui cabe-se perguntar, o que isso tudo tem a ver com o Catarismo?


                Para uma descrição do que foi o satanismo soviético no campo SLON, bastaria ler a autobiografia de um prisioneiro que escapou (p. ex. http://archive.org/stream/ispeakforthesile013752mbp#page/n9/mode/1up), e para o Cátaro, assim como qualquer gnóstico que se preze, a noção do Mundo material como a Ilha das Lágrimas, um campo de sofrimento onde somos prisioneiros temporários, é bem sabida, então não haveria também nisso novidades.


                Aqui entra a descrição da figura misteriosa de Seraphim Pozdeyev, que alguns consideram como o próprio Mikhail II Romanov (o Romanov desaparecido), que passou 39 anos como prisioneiro em Solovki. Foi ordenado sacerdote ortodoxo em 1917, bispo em 1925.

                É uma crença Cátara, que o Bem seja em última instância indestrutível. A ação e as obras dos homens espirituais, puros, pode ser ocultada pela força ou distorcida pela malícia, mas nunca podem ser negadas nem completamente apagadas. Os bolcheviques implantaram uma sucursal do Inferno naquelas terras espirituais, mas o Fogo Frio, ao mesmo tempo ígneo e impassível, que brota do Espírito purificado não pode sumir completamente. E frente à ação dos demônios de criar o que seria seu modelo para o grande sacrifício futuro da humanidade ao Uno, a resposta dos Céus veio na pessoa de Seraphim, que estabeleceu a forma de resignar, ou neutralizar, o efeito da dor, do medo e do sofrimento.

                Seraphim compreendeu que o Gólgota que ele e seus colegas passavam era a essência da vida sobre a terra, e reagiu utilizando a Mystica Cruxificio como instrumento para a transformação do Espírito mediante a superação da Morte, que torna as ameaças e torturas inúteis.

             
   Ele pregava, e reunia as pessoas em torno de si, criando um cerco psicológico dentro de seu círculo de ouvintes, um microclima onde as pessoas cantavam e se alegravam em meio dos dias intermináveis de fome e trabalho forçado. Procedendo desta forma, ele operava a transubstanciação do sangue derramado em Luz espiritual, através da aceitação do sacrifício, do desapego à vida e desejo de retorno aos Céus, que temos de reconquistar conquistando a Morte. Cito mais uma vez o trabalho de Johann Bereslavsky,

                “Os presos assim consagrados ao chamado ‘mistério de solovetskiy’ suportaram uma dolorosa e tormentosa crise. A superação dessa crise se converteu em um milagre sem procedentes. O medo da dor e da morte desaparecia para sempre; no seu lugar, tiveram transformações inauditas. Já não temiam as chamadas terríveis dos verdugos, nem o grunhido agressivo dos mastins, nem os disparos a queima-roupa, nem a baioneta afiada do soldado vermelho, nem o frio nem a fome.
                Uma desolação total os ameaçava, mas com uma renovação dos valores e a aceitação voluntária da tortura como sacrifício de amort, da resignação de todos os medos e quimeras, acharam a maior das alegrias por terem vencido a dor suportada. A felicidade como estado divino que trespassa esta terra, a felicidade como a atmosfera do Pleroma. E então a comunidade do Gulag se converte em Kitezhgrad, a morada divina prometida.”

                O Amor-Morte, o Mistério atlante de Amort, é a força por trás das trovas cátaras, o sentimento de nostalgia irresistível pela Pátria do Espírito que culmina em um resolução irrevogável de partir deste mundo, de largar tudo ou de esfriar completamente para o mundo, em nome da Amada Distante. No Calvário de Solovki, o aspecto “amor” era uma pura Camaradagem daqueles irmãos no sofrimento que se reuniam para ajudar uns aos outros a enfrentar com galhardia e honra o fim próximo desta vida, e a preparar-se para a existência verdadeira além da vida.

                “Sou testemunha – diz o Monsenhor Serafim – de que nunca, em parte alguma do mundo, se viu um amor assim. Em meio a uma dor inumana e insuportável, entre a desonra e a injustiça, jamais se tinha irradiado um amor tão celestial. E que amor nos deu o Senhor durante os trabalhos forçados, sob a ameaça diária de morte, entre as lágrimas e a dor infinita. Seu amor cobria todas as cruzes [...]
                A Morte era uma recompensa, como para as vítimas de outros campos. Fazia tempo que ninguém mais temia a morte. Não costumávamos falar dela, pois para nós a morte não existia em absoluto. Nós a vencemos. À meia noite se descobria uma iconostase celestial com a magnitude do horizonte, os confins se abriam e façanhas próprias de mártires eram executadas pelas pessoas comuns. Corriam rios de sangue dos justos na terra:
                Não havia a quem se queixar. Os doentes morriam de disenteria sem contaminar ninguém. As doenças alheias não importavam – bastavam as próprias. Muitos acabavam loucos. Os que perdiam a cabeça eram juntados em uma sala e fuzilados. [...] Os queimavam com cigarros, desmembravam os vivos, lhes arrancavam órgãos. Lhes golpeavam a cabeça até saírem os sisos, os torturavam com fogo e carvão. Experimentavam torturas psicológicas e drogas. Atroz era seu último suspiro, mas um suspiro de júbilo, de alívio antes do passo final à eternidade.”

                Em resumo, para o Cátaro o Mundo é Solovki, o Calvário, a Ilha maldita das Lágrimas, subjugados em todos os âmagos pela hierarquia infernal e terrena do Rei do Mundo. Aqui, ele determina e edita as leis, e impõe os castigos a seu bel-prazer. Não há possibilidades, antes do final, para os prisioneiros, é impossível tomar o campo da mão dos guardas ou escapar com vida.

                E no entanto, ao invés da lamúria, o Cátaro pratica uma ação de guerra, de isolamento e cerco, criando um microclima psicológico onde o medo da morte e a dor do sofrimento são sublimados pela nostalgia da Origem espiritual perdida, e o sentido da vida – o Sacrifício do Sangue para o grande Moloch – é re-signado e retransformado em desejo de libertação e vitória contra a Morte.Tal ação por parte dos Iniciados Perfeitos é um dever na guerra espiritual que travamos, e as Últimas Gotas derramadas neste martírio serão a ÚNICA luz espiritual a alcançar os tempos futuros.
               
O TERCEIRO MITO. NOSSO FUTURO. O ÚLTIMO GRITO QUE CLAMARÁ À PARACLESE DIVINA A DESTRUIÇÃO DO MAL

Assassino! Homem de fogo!
 Assassino! Eu vi os olhos dos mortos em vida
É o mesmo jogo - sobrevivência
A grande massa joga um jogo de espera
Embalsamada, invalidada, morrendo de medo da dor
Todo o senso de liberdade se foi
Sol escuro num mundo claro
Como ter um sol escuro em um mundo claro
Eu tenho um filho, o nome dele é Éden
É o direito dele, além do tempo alienado
Dê-me 69 anos, outra passagem neste inferno
É tudo sexo e morte, tão longe quanto se  possa dizer
Como Prometeu estamos presos,
Acorrentados nesta rocha de um admirável mundo novo
O nosso lote maldito
E eu sinto que é tudo que nós sempre precisamos saber
Até que mundos acabem e os mares congelem
Dê-me 69 anos, outra passagem neste inferno
Há sexo e morte nos planos da mãe natureza
Como Prometeu estamos presos,
Acorrentados nesta rocha de um admirável mundo novo
O nosso lote maldito
(Brendan Perry, “Black Sun”)

                Aprendemos dos nossos predecessores maniqueus e mazdeístas que o reino de Satanás que engloba este mundo é um campo de batalha entre duas qualidades de Éons: os Arcontes que contribuem com o aprisionamento do Espírito no mundo, e os Luminares de Kristos Luz que se dedicaram a salvar a nós, seus irmãos e iguais, das garras do demônio.

               
Sendo um abismo regido pelos Arcontes, o Espírito aprisionado conta com uma terrível desvantagem, pois as forças de Kristos não podem intervir diretamente sob pena de destruir e condenar ao nada não somente os Arcontes mas seus reféns: nós. Porém, um dia tal intervenção terá de ocorrer, e ocorrerá, no momento em que todos os que existam para serem libertos o forem.

                Os Luminares e Éons se propuseram desde o princípio a lutar pela libertação do mundo, porém nós os traímos: enfeitiçados, decerto, pelo feitiço de Yaldabaoth que nos privou de nossa Epinoia, nos acostumamos com a vida no mundo e perdemos a vontade de nos libertar. Tudo o que o exército furioso do Deus Incognoscível aguarda é um sinal dos homens, exigindo sua herança divina, exigindo a libertação desse mundo maligno do qual os homens sentiram nojo depois de vê-lo tal qual é.

                Os Éons aguardam o Último Grito, que reunirá milhares, milhões de angustiados clamando com todas as suas forças pela Paraclese do Deus Incognoscível, pela sua intervenção direta em nome da interdição do Maligno, e da destruição definitiva do Mal. O Último Grito clamará a destruição desse mundo e nossa restauração como Espíritos Eternos no Pleroma.

                Sabemos que a Tirania de Ferro do Povo Eleito de Jehova-Satanas ainda está se formando, avançada mas não completa. Uma distopia à la Orwell, Huxley, Kafka ou Lovecraft são apenas frações do horror para o qual caminhamos. O objetivo é oferecer a máxima quantidade de sangue em oferenda ao deus deste mundo, que se compraz e alimenta do sofrimento. E ainda há muito o que fazer para tornar a vida mais miserável.

                E enquanto o sofrimento abate a imensa massa das pessoas, em raros casos ocorre que a própria brutalidade da vida desperte indivíduos contra ela; indivíduos espiritualmente puros, porém sem ter ideia do porquê da realidade mundana, nem noção do que fazer a respeito. Para estes, nós faremos a Verdade chegar através dos Khairé. Conhecerão a verdade, e quererão agir de alguma forma, e então lhes instruiremos.

                Daí a missão dos Cátaros nessa era ser bem específica; mais ainda,constitui um dos três mitos fundadores, na qualidade de declaração da missão à qual fomos chamados, como cátaros.

                Não nos oporemos material e politicamente à hierarquia de demônios que já prevalece no mundo, mas manteremos vigília nas sombras, onde se cumprirá nossa real mssão:

                Devemos acompanhar o Inimigo fechar o cerco e prestarmos atenção às pessoas. Devemos incitar e provocar as pessoas para que vejam a realidade maligna do mundo e sintam nojo e desprezo; devemos localizar as pessoas que reagem aos tempos com seu potencial espiritual e, se estas permitem, instruí-las nos Mistérios e somar sua voz ao Último Grito.

Localizando e preparando as pessoas com maior potencial espiritual, nossa missão é aguardar a máxima potência das Sombras do inferno. Quando a criação material atingir seu ponto máximo de horror e sadismo, devemos empregar o Último Grito clamando pela Paraclese do Incognoscível, trazendo o exército furioso de Kristos sobre o mundo para varrer céus e terra e nos libertar a todos pela morte da matéria e pela restauração do Espírito plenipotente e puro.

                

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