Aviso: esta postagem é um tanto quanto longa... umas 10 páginas no Word - mas não podia ser de outra forma, e quebrar a postagem em partes menores quebraria, creio, a continuidade do pensamento.
Como sei que muita gente pode querer ler um tanto de cada vez, adianto que o texto é dividido em cinco sub-tópicos, a saber,
PARTE I: “MITO” COMO MARCO FUNDADOR DE UMA CONSCIÊNCIA
PARTE II: A LINHA DE CONSCIÊNCIA DO CATARISMO: DA SUA CONCEPÇÃO ATÉ O PRESENTE
PARTE III: O PRIMEIRO MITO. NOSSO PASSADO. MONTSÉGUR: O MODELO PERFEITO PARA O SER
PARTE IV: O SEGUNDO MITO. NOSSO PRESENTE. O CALVÁRIO DAS SOLOVKI COMO REALIDADE ARQUETÍPICA DO MUNDO MATERIAL
PARTE V: O TERCEIRO MITO. NOSSO FUTURO. O ÚLTIMO GRITO QUE CLAMARÁ À PARACLESE DIVINA A DESTRUIÇÃO DO MAL
“MITO” COMO MARCO FUNDADOR DE UMA CONSCIÊNCIA
Existe uma progressão dos seres, no universo da matéria de Jehova, que
vão desde seres brutos, com um grau de existência ínfimo (abaixo dos vírus, na
verdade), passando progressivamente para seres sencientes (que possuem sentidos
fisiológicos) e finalmente conscientes (também aqui há graus distintos de
consciência, mas isto fica para outro momento).
O verdadeiro nascimento de um ser consciente não é exatamente o momento
do parto, pois até então a criança é um ser que possui apenas faculdades
fisiológicas e um potencial, não realizado, para a consciência. A consciência
nasce quando a criatura primeiro pensa em si como o sujeito de alguma ação ou
fato: este primeiro “eu sou...” ou “eu estou...” possui no “eu” o marco zero do
fio condutor da história desse ser, da sua sucessão de fatos e pensamentos
marcantes que ele marcará como sendo a “história da sua vida”, o novelo de
Ariadne que é a própria substância da consciência.
A partir do momento em que haja um “eu” em torno do qual a sucessão de
fatos do tempo que transcorre no mundo se organiza, há consciência e um grau de
existência superior ao dos seres apenas sencientes mas não conscientes.
Assim também para uma doutrina filosófica, mística ou política, seu
nascimento, desenvolvimento e morte estão ligados a uma “consciência” gregária,
alimentada pelo coletivo humano. Os marcos significativos desse fio histórico
serão fatos históricos (o nascimento, coroação ou martírio de algum líder,
alguma batalha ou rebelião, etc, etc, etc), ou mitos fundadores (a batalha
ritual de Rômulo e Remo, a aparição ou revelação de alguma divindade, a mudança
de uma era astrológica, etc, etc, etc).
Deve-se entender com isso duas categorias de marcos. Enquanto os fatos
históricos, por si mesmos, são úteis para delimitar espacial e temporalmente a
doutrina em questão, informando o que ocorreu com ela num determinado ponto do
espaço-tempo, os mitos possuem uma qualidade dupla. Sejam fatos temporalmente
precisos ou não, e sua factibilidade pode ser discutível ou não, mas um Mito
fundador informa o “Si Mesmo” da Doutrina não apenas um marco no tempo, mas uma
qualidade inegável, um destino arquetípico que a doutrina está chamada a
cumprir, uma característica que compõe e define a essência desta doutrina.
Pode-se inclusive traçar um paralelo entre a mera historiografia de uma
doutrina com a consciência de uma criança pequena, que sabe por exemplo que vai
comer de manhã, brincar, dormir uma certa hora da tarde, comer de novo, etc,
etc – a historiografia é sempre factual, e dificilmente qualitativa (se
ignorarmos as tendências e vieses ideológicos dos autores). Enquanto isso, um
Mito fundador equivale, em qualidade da consciência, a uma epifania ou reflexão
profunda que um adulto já sábio faz de si mesmo, sintetizando sua essência e
vocação em um mito arquetípico que se repete, como padrão, ao longo da vida deste
adulto: um padrão revelado à consciência através das chaves semióticas do Mito.
Mais ainda: a exploração, aprofundamento e assimilação das chaves
semióticas contidas nos mitos é a própria essência de carregar um Mysterium –
esperava-se que um homem, a quem um Mistério fora revelado, como os Koans
budistas, se debatesse nestas chaves e buscasse enxergar, através de seu
prisma, um padrão, uma essência, uma qualidade inegável pertencente ao íntimo
de seu ser.
A LINHA DE CONSCIÊNCIA DO
CATARISMO: DA SUA CONCEPÇÃO ATÉ O PRESENTE
Assim, de fato, é com o Catarismo. Historicamente, a doutrina Cátara,
herdeira de uma cadeia de continuidade gnóstica quase-acidental, teve sua vida
durante um período delimitado da Idade Média, e depois do martírio a que foram
submetidos, os Cátaros passaram à “História”, à “Memória” da humanidade na
forma de relatos escritos extremamente parcos e distorcidos, da mesma maneira
que as pessoas costumam falar livremente sobre a vida de um “falecido” que não
esteja ali para redarguir.
O Catarismo medieval, típico da Provença, Itália e do sudoeste alemão,
foi um período na vida do Catarismo como doutrina: evoluindo desde os tempos
pré-natais dos cultos indo-iranianos ao Fogo Purificador, passando na infância
pelas diversas formas de gnosticismo cristão das escolas egípcia e greco-síria,
o Catarismo definiu a si mesmo no Languedoc com um nome simples,
propositalmente simplório: les Bons Hommes, os Homens Bons, adeptos da divina
Bonomia.
Propositalmente simplória era também sua doutrina, que através dos olhos
da Gnosis focou seu olhar no único objeto ao qual era permitido e lícito,
naqueles tempos, mirar: o Cristianismo católico. Através deste olhar, surgiu
uma reação espontânea de repulsa e desejo de reforma, de purificação: aqueles
Bons Homens, que fizeram votos de Catarse enquanto durassem suas vidas,
quiseram estender a graça da Catarse à cultura europeia, ao Cristianismo
católico, purgando seus desvios e erros.
Os Iniciados Perfeitos capitalizaram esse olhar espiritual, espontâneo,
daquele povo medieval simplório e de corações transparentes, num intento
reformista que, num primeiro momento, foi uma renovação da declaração de guerra
ao Demiurgo e aos seus sequazes (infernais e terrenos), e num segundo momento,
deu a muitos homens a dádiva do Martírio, através do qual a Última Gota do
sangue de cada homem caído se somou ao Cálice, transmutado e dignificado por
Epinoia, Minne, a Mãe Perfeita que transubstanciou a consciência pura daqueles
homens em Luz Suprasubstancial no seio do divino Cálice, que é o assento da
Comunidade Cátara.
Se hoje falamos em Catarismo, não se deve ser simplista em assumir que
se está fazendo uma simples reencenação, um ressurgimento de uma forma do
passado: antes, e mais importante, a essência deve ser mantida sobre a forma, e
a essência está nas premissas fundamentais do Cátaro, as Quinze Pérolas que
correspondem aos quatro trios de Luminares que guardam a obra do Deus
Incognoscível, mais a Divina Trindade, que chamamos a Protennoia Trimórfica.
Encaramos hoje um mundo muito mais multifacetado, disperso, e muita
informação crucial foi redescoberta ou desenvolvida, que não estava disponível
aos Iniciados da Montségur original. Enquanto aqueles homens puros redescobriam
sozinhos, através da Voz de seus Espíritos, o grande engano do Demiurgo, esse
mesmo pensamento já havia sido redescoberto por outros homens, no Egito de
oitocentos anos antes, e seus enunciados estavam ocultos em uma caverna em Nag
Hammadi. Sinais de outros homens que pensaram e sentiram o mesmo se espalham
pelo mundo antigo.
Nada mais natural do que empossarmos os mais potentes destes
textos e sinais em nossa base canônica. Se a espiritualidade autêntica e a
profundidade de pensamento estão morrendo com a decadência do mundo, por outro
lado temos o privilégio de viver em uma era inundada de informação, o que não
tem precedente em outros momentos históricos. Com a abertura de registros e
materiais, a base propícia para a doutrina Cátara se ampliou demais, e não é
mais preciso nos identificarmos artificialmente com o cristianismo medieval:
somos a Doutrina do verdadeiro Kristos, que jamais deve ser confundido com a
farsa essênia (nos aprofundaremos neste ponto no próximo artigo, que trata da
relação do Catarismo com várias outras religiões).
Por outro lado: ignorar o
fluxo enorme de informação dos últimos séculos, desde que Guillaume de
Bélibaste profetizou o Reverdecer do Laurel até hoje, seria desleal no sentido
de que estaríamos idolatrando uma forma fixa do passado, no lugar da essência
da Doutrina exposta nas Quinze Pérolas. Seguindo a analogia da consciência
cátara com a consciência de um indivíduo, se um homem fica longamente em coma e
desperta, décadas depois, seria tolo de sua parte pretender viver o passado.
Deverá enfrentar a vida presente com aquilo que ele é essencialmente, o núcleo
de seus valores e de sua honra.
Claro que aqui se deve tomar o máximo de cuidado com oportunismos.
Diversas doutrinas “reconstrucionistas” usam do mesmo expediente, o do
imperativo de adaptação e assimilação da realidade atual, como escusa para
introduzir deformações grotescas, que apenas servem a agendas de indivíduos
particulares que não desejam ver ressurgida a essência de uma doutrina ou
religião autenticamente dissidente, incompatível com a perversidade da era
contemporânea, e por isso a deformam para torna-la inócua. Por isso deve-se ser
leal, ferreamente leal, às bases canônicas que, sendo fruto de uma síntese
cuidadosa, são as bases constituintes do pensamento cátaro. O que florescer daí
– ritos e liturgias, textos e orações – será antes filtrado através dos
preceitos do cânon, evitando a introdução de perversões. Em resumo: o que se espera
de uma doutrina sólida e autêntica não é que ela se molde ao espírito de cada
época, especialmente considerando a era maligna em que vivemos, mas que,
permanecendo firme em si, seja uma resposta direcionada para o tempo atual. É
um terreno extremamente delicado, no qual se deve contar que cada peregrino use
o máximo de suas faculdades intuitivas, e peça sempre ao Deus Incognoscível por
orientação e catarse, para não cair em uma das diversas armadilhas do Demiurgo.
E acima de tudo, ser puro também no sentido de não contemporizar, não ocultar,
não mentir, não ceder.
Antes de falarmos em bases canônicas, em ritos e estruturas litúrgicas,
entretanto, é crucial que se entenda quais são, então, os Mitos fundadores que
provêm à doutrina Cátara seu mais profundo senso de identidade.
O PRIMEIRO MITO. NOSSO PASSADO. MONTSÉGUR:
O MODELO PERFEITO PARA O SER
“Bela e solene Carcassonne! Em nenhum outro
lugar do Ocidente existe outra como tu. Como outrora, se alçam as muralhas maciças
de suas torres e seteiras. E elas falam!
Hoje estive na Tour de l’Inquisition, a Torre
da Inquisição. Nela teve fim o drama albigense. Aqui os inquisidores fizeram
emparedar os defensores do castelo de Montségur que não foram queimados na
fogueira. Quatrocentos. Entre os emparedados também se achava um Cavaleiro que,
uma vez frente à Cruz, teria proclamado em voz bem alta que nunca desejaria ser
salvo por este símbolo. Que símbolo de salvação ele teria desejado, então? O
Gral?” (Otto Rahn, “A Corte de
Lucifer”)
Seguindo uma
lenta rota desde a Armênia, passando por Bulgária, Sérvia, Bósnia e Itália, o
Catarismo clássico criou raízes com pregadores populares falando aos corações
do povo na cidade piemontesa de Albi (de onde veio o termo Albigenses) e daí
para todo o centro-sul da Europa ocidental.
À medida que tal movimento expansivo foi
encontrando a resistência da Igreja institucionalizada, gradualmente os Cátaros
começaram a subir as montanhas, literalmente, para escapar do mundo e se
fortificar.
Longe de ser apenas um fato contingente, uma
necessidade de momento de um período histórico, esse padrão é em si um mito,
uma estrutura que se repete.
Os pregadores albigenses são o Espírito eterno
reencontrado com sua realidade imutável, essencial. Tomado pelo ardor do
Espírito Santo Divinizador, ele rompe com o Mundo, assume sua humilde veste
negra – simbolizando que está morto para o mundo da matéria, não mais reflete e
propaga os raios do Sol material – e sai em peregrinação vivendo e espalhando a
verdade, denunciando, como o inocente Parsifal recém chegado em Camelot, a
impureza e a malícia serpentina dos filhos de Jehova-Satanas, onde quer que tal
malícia e tal impureza se encontrem.
O subir a montanha em si engloba todo um
universo mítico, e místico. Há de se ler o Zaratustra de Nietzsche para
compreender os seus cumes de montanha, assim como o Monte Vênus em Tannhäuser. Subir
a montanha é resguardar-se interiormente do mundo, mas mais do que isso: porque
morrer para o mundo e para a vida na Terra não é um suicídio existencial (nem
físico!!!), nem um ato de apatia e amargura. Ao contrário, despreza-se o
mundano e o físico por saber-se eterno e infinito, e subir a montanha é a busca
do Espírito por silêncio e ares rarefeitos, por terras não trilhadas e limites
não alcançados. É a busca pela pureza do Pleroma, que vai na direção contrária
de Roma, do Mundo corrompido e doente.
O cume da montanha é o local da Catarse, da
purificação absoluta. Legiões de doentes subiam ao forte cátaro de San Salvador
buscando cura para a loucura ou para doenças debilitantes que achavam ser fruto
de uma possessão. A força carismática dos monges Cátaros dava a esses doentes
uma tal esperança supra-terrena, que nas proximidades da base do monte já se
sentiam felizes, e segundo os contos que se dissolveram no tempo, subiam a
montanha dançando ou cantando.
Os que buscavam o Consolamentum subiam a
montanha (de San Salvador ou de qualquer outro forte ou caverna nas montanhas
onde os monges Cátaros ofereciam a iniciação) de forma extremamente vagarosa,
levando até meses. Durante esse período, eram instruídos na Catarse e iam
deixando, “montanha abaixo”, suas impurezas humanas à medida que se livravam
delas. No alto da montanha, a fortaleza, com um amplo pátio onde aqueles que já
eram iniciados sem sabê-lo adentravam, contemplando em absoluto silêncio o
“Oceano de Éter”, um estado mental que era como se respirassem a atmosfera de
outro planeta, com apenas seus pés tangendo esta terra e este mundo...
“Ó suave Montanha! Pela noite, ressoam odes a
Pyrena!”
Tal é o modelo arquetípico do Ser, para o
Cátaro. Busca-se pela Catarse subir ao alto da sua montanha interior, no vazio
e na quietude onde os pensamentos mundanos são ausentes, na negrura infinita
onde se celebra a Sagrada Teogamia. E ali o ser cerca e fortifica a si mesmo,
construindo o Castelo Interior que é o espelho microcósmico de Montségur.
A estranha construção de Montségur, construída
com proporções e princípios que não são deste mundo, pertence a uma seleta
lista de locais nos quais o Rei do Mundo e seus sequazes mais focaram seu ódio
aterrador, e que os Arcontes mais temiam e mais incitavam e ordenavam seus
servos para que os destruíssem – porque existem locais, que são destruídos,
deturpados ou possuem seus símbolos originais distorcidos, justamente por serem
lembranças vivas da nossa Herança espiritual, provas gravadas em pedra dura de
que não somos deste mundo, e que enchiam o Espírito de nostalgia e desejo de
retorno.
E mesmo nesta seleta lista, Montségur era
especial. Este forte cátaro era, acima de tudo, o Assento do Gral na Terra,
como jamais houve após sua destruição. O que não se deve entender de maneira
leviana: não um cálice físico, o Gral, mas o receptáculo da Última Gota de
todos os mártires e heróis que se elevaram aos mais altos céus pela honra na
morte, pela superação na morte e Valor na luta contra o Demiurgo. Mais do que
um mero receptáculo, o Gral é um instrumento de orientação – esta Última Gota
de sangue é transubstanciada pela Sagrada Minne em Luz Suprasubstancial (a qual
pedimos no Pater) que o Gral então derrama sobre a Terra, sincronizando todos
os Espíritos adormecidos na vontade uníssona de Libertação, fazendo-os
despertar da sua condição miserável de escravos de Jehova-Satanas!
Pois uma vez que o ser suba sua montanha, deixando
o não-essencial para trás, purificando a si mesmo e recuperando sua dignidade
de um verdadeiro Filho do Deus Incognoscível, ali, no ponto mais puro, remoto e
silencioso possível, ele constrói seu forte e ali se isola – contra as
investidas do demônio, contra a corrupção e a sevícia da própria alma.
E ali, naquele terreno (mental) tomado, cercado
e isolado, no recôndito mais profundo de um coração que já não é mais humano, o
Cálice será derramado, e o Ser será banhado pela Luz que fez os Arcontes tremerem
de medo, pois era sua própria Origem à qual renegaram para se constituírem
Senhores do Inferno. Com a luz dessa Luz, então, o Ser poderá enxergar, no
alto, seu antigo lar, onde está e como alcança-lo...
O SEGUNDO MITO. NOSSO PRESENTE. O
CALVÁRIO DAS SOLOVKI COMO REALIDADE ARQUETÍPICA DO MUNDO MATERIAL
“Acordem, seus tolos, para o
massacre sangrendo que está ocorrendo. Afinal, o que vocês fazem não é apenas
crueldade – vocês agem como Satanás, vocês que estão prontos para o fogo do
inferno, na próxima vida que no caso de vocês será uma maldição terrível [...]”
(discurso do patriarca Tikhon
aos bolcheviques, 19/01/1918).
Existem
recônditos profundíssimos da História que não podem ser exatamente vistos,
representados ou comprovados – não com a visão materialista e estúpida da
historiografia, obcecada por uma materialidade de prova que a cega
inevitavelmente para o passado profundo, mas sentindo com o sangue e com o
espírito os sinais remotos e pálidos que chegam à nossa atenção.
Nesse sentido, as
ilhas Solovki parecem gritar ao Espírito buscador com sua história quase sempre
obscura, como as tumbas inumanas atraíam a curiosidade dos heróis
lovecraftianos.
Um arquipélago no
Mar Branco, a nordeste da Carélia russa, as ilhas Solovki guardam uma relação
dual com o sagrado e o satânico que a torna um modelo arquetípico da existência
do Espírito encarnado nesse mundo.
Nas proximidades do
Ártico, as Solovki possuem um microclima próprio, estranhamente ameno, com
temperatura média anual de apenas 11 graus Celsius. Peculiaridades geográficas
únicas no mundo tornam a região tão abundante em peixes que era possível
pegá-los com a mão, entrando na água até o joelho. Seus primeiros habitantes
eram povos paleo-siberianos (lapões) e posteriormente fino-úgricos (carelianos,
vepps, kola), que visitavam as ilhas com dois propósitos: a pesca, e a
realização de rituais obscuros envolvendo sempre os labirintos de pedra que
abundam ali, em formatos de espirais simples, complexas ou labirintos clássicos.
Os lapões atribuem
a uma raça de gigantes a construção desses labirintos, que chamam a atenção por
sua quantidade e densidade em uma área tão pequena, sem paralelos no mundo:
existem cerca de 125 labirintos dessa idade e estilo no Hemisfério Norte, com
35 nas ilhas Solovki (um arquipélago de 320km²), com um grande número
concentrado na ilha chamada Staraya Zayatsky, de apenas 1,5km². É impossível
negar que haja algo de sacro nesse local. Nos últimos séculos, inclusive na era
soviética, os dirigentes russos sempre deram uma grande importância às ilhas
consideradas por muitos “o coração da Rússia”, “o centro espiritual do Norte”,
ou nas palavras mais ousadas de J. Bereslavsky, um fortíssimo centro de energia
Hiperbórea. Pedro o Grande foi se consagrar nas Solovki antes de empreender uma
guerra contra a Suécia, e os mosteiros ortodoxos ali construídos chegaram a ter
uma autoridade incontestável na igreja ortodoxa russa da era dos tsares.
Além dos
monastérios e igrejas, um forte do século dezessete permanece ali, e as ilhas
já viram cerco tanto de tropas suecas, quanto de tropas do governo russo que
depuseram um conjunto de monges que se rebelara contra a autoridade da coroa,
dita corrupta e mundana. Mais de um movimento bélico para a purificação da
igreja e da coroa tomou lugar nas Solovki.
A riqueza da
história das ilhas Solovki não cabe nesse blog. Como um local de grande energia, e um possível passado atlante
cujo legado foi passando, cada vez mais adulterado, pelos pescadores nômades
cultores de labirintos, foi aproveitado para diversos fins, pela Igreja
Ortodoxa, pela Coroa russa e depois pelos bolcheviques. Segundo o arquimandrita
Ilarii, “o nome Solovki se tornou terrível na História da Rússia”.
Ali, como modelo
reduzido do mundo, foi um local onde o ser humano tentava cultivar o Espírito,
e inclusive se criaram cercos com esse fim (como no alto das montanhas
Cátaras), porém o interesse dos poderosos em explorar e verter aquele sangue
espiritual para seus fins particulares transformaram as Solovki na “Ilha das
Lágrimas”, um local de guerra e sofrimento, e uma prisão construída pelos
poderosos para exilar os rebeldes que clamavam por pureza, justiça, beleza,
enfim, pelos valores do Espírito. “Na Rússia, a prisão é mais do que uma prisão
– as prisões russas alcançaram um nível inimaginável de humilhação da
personalidade humana”, segundo Mokrousov: Na
era dos tsares as Solovki já haviam se transformado em uma prisão, mas sua
transformação definitiva no modelo arquetípico do Gólgota ocorreu sob o mando
de Lenin.
Após expropriar as
terras da Igreja, Lenin emite em 1920 um decreto que cria, no antigo complexo
de mosteiros, o “elefante” ou SLON – “Solovetsky Lager’ Osobogo Naznachenya” ou
“Campo para Propósitos Especiais Solovetsky” (a palavra “slon” significa “elefante”
em russo, e esse foi o apelido do campo que se tornou o primeiro dos Gulag
soviéticos). Membro do Povo Eleito de Jehova-Satanas, Lenin foi um dos grandes
sacrificadores que já verteram sangue em nome do Rei do Mundo; ele estabeleceu
um campo de prisioneiros em Solovki aonde se experimentariam métodos – de tortura,
experimentos médicos e psicológicos, de controle pelo medo – para serem
amplamente usados a posteriori; daí o lema dos torturadores, “Hoje, Solovki.
Amanhã – toda a Rússia”. Disse Lenin em um memorando para o Politburo, lido por
Molotov em 19/03/1922:
“Agora, e apenas agora, quando as
pessoas famintas estão à deriva e nas estradas milhares de corpos são
empilhados, nós podemos, e portanto devemos, proceder com o confisco dos bens
valiosos da igreja com a mais selvagem e impiedosa energia, não parando diante
de qualquer resistência[...] quanto mais reacionários e burgueses conseguirmos
com esse único tiro, melhor. Necessário ensinar essa audiência, para que depois
de uma curta resistência eles nunca mais ousem pensar.” (V.I. Lenin)
As Solovki então
são um modelo, arquetípico decerto, um pequeno fractal do que é em essência o
Abismo Terra. Toda a santidade e a energia espiritual dos antigos cultores de
labirinto foram corrompidas para que o Homem não recupere sua Epinoia, não ouça
o canto de Minne, e no lugar dos Mistérios sagrados, prisão, humilhação,
tortura e trabalhos forçados. E quando acontece a instauração da Tirania de
Ferro dos sequazes do Rei do Mundo, todos sacerdotes em segredo, versados no
sacrifício do sangue puro e na corrupção da terra, o sofrimento atinge seu
ápice. Usando breves descrições de prisioneiros, obtidas pelo serviço secreto
polonês:
Prisioneiro M. Nesterov: “Construção do Inferno”.
Prisioneiro O. Yafa: “O sofrimento é o denominador comum aqui”.
Prisioneiro O. Volkov: “Na frente dos nossos olhos eles surravam as
pessoas, as forçavam a correr, as assustavam com tiros de festim que vinham das
torres; os que caíam eram erguidos e os guardas chutavam seus rostos até que
estes se tornavam uma pasta de sangue”.
Prisioneiro E. Solovyev: “prisioneiros eram forçados a comer
excrementos; outros tinham a pele do ombro retirada. Os que clamavam por Deus
eram crucificados nus no frio”.
Relatório da polícia polonesa,
USLAG, 1932: “A relação dos
guardas com os prisioneiros beira o sadismo. Castigos característicos: surra de
bastão, banhos no frio, imersão em buracos no gelo, exposição ao frio por
horas.
Assim como nas eras
mais cruéis do industrialismo, e do neoliberalismo que está sendo plantado
hoje, os prisioneiros recebiam uma ração proporcional ao seu trabalho: os que
realizavam as tarefas mais pesadas recebiam 300g de pão, os que faziam
trabalhos leves, metade disto, e os doentes, inválidos e idosos eram deixados
para morrer de fome. Ali foi o primeiro laboratório de técnicas de
punição-e-recompensa, servindo de modelo para que toda uma humanidade
desesperada para sobreviver aprenda a vender a alma em trabalhos degradantes
por cada vez menos.
Aqui cabe-se
perguntar, o que isso tudo tem a ver com o Catarismo?
Para uma descrição
do que foi o satanismo soviético no campo SLON, bastaria ler a autobiografia de
um prisioneiro que escapou (p. ex. http://archive.org/stream/ispeakforthesile013752mbp#page/n9/mode/1up), e para o Cátaro, assim como qualquer
gnóstico que se preze, a noção do Mundo material como a Ilha das Lágrimas, um
campo de sofrimento onde somos prisioneiros temporários, é bem sabida, então
não haveria também nisso novidades.
Aqui entra a
descrição da figura misteriosa de Seraphim Pozdeyev, que alguns consideram como
o próprio Mikhail II Romanov (o Romanov desaparecido), que passou 39 anos como
prisioneiro em Solovki. Foi ordenado sacerdote ortodoxo em 1917, bispo em 1925.
É uma crença
Cátara, que o Bem seja em última instância indestrutível. A ação e as obras dos
homens espirituais, puros, pode ser ocultada pela força ou distorcida pela
malícia, mas nunca podem ser negadas nem completamente apagadas. Os
bolcheviques implantaram uma sucursal do Inferno naquelas terras espirituais,
mas o Fogo Frio, ao mesmo tempo ígneo e impassível, que brota do Espírito
purificado não pode sumir completamente. E frente à ação dos demônios de criar
o que seria seu modelo para o grande sacrifício futuro da humanidade ao Uno, a
resposta dos Céus veio na pessoa de Seraphim, que estabeleceu a forma de
resignar, ou neutralizar, o efeito da dor, do medo e do sofrimento.
Seraphim
compreendeu que o Gólgota que ele e seus colegas passavam era a essência da
vida sobre a terra, e reagiu utilizando a Mystica Cruxificio como instrumento
para a transformação do Espírito mediante a superação da Morte, que torna as
ameaças e torturas inúteis.
“Os presos assim consagrados ao chamado ‘mistério
de solovetskiy’ suportaram uma dolorosa e tormentosa crise. A superação dessa
crise se converteu em um milagre sem procedentes. O medo da dor e da morte
desaparecia para sempre; no seu lugar, tiveram transformações inauditas. Já não
temiam as chamadas terríveis dos verdugos, nem o grunhido agressivo dos
mastins, nem os disparos a queima-roupa, nem a baioneta afiada do soldado
vermelho, nem o frio nem a fome.
Uma
desolação total os ameaçava, mas com uma renovação dos valores e a aceitação
voluntária da tortura como sacrifício de amort, da resignação de todos os medos
e quimeras, acharam a maior das alegrias por terem vencido a dor suportada. A
felicidade como estado divino que trespassa esta terra, a felicidade como a
atmosfera do Pleroma. E então a comunidade do Gulag se converte em Kitezhgrad,
a morada divina prometida.”
O Amor-Morte, o
Mistério atlante de Amort, é a força por trás das trovas cátaras, o sentimento
de nostalgia irresistível pela Pátria do Espírito que culmina em um resolução
irrevogável de partir deste mundo, de largar tudo ou de esfriar completamente
para o mundo, em nome da Amada Distante. No Calvário de Solovki, o aspecto “amor”
era uma pura Camaradagem daqueles irmãos no sofrimento que se reuniam para
ajudar uns aos outros a enfrentar com galhardia e honra o fim próximo desta
vida, e a preparar-se para a existência verdadeira além da vida.
“Sou testemunha – diz o Monsenhor Serafim –
de que nunca, em parte alguma do mundo, se viu um amor assim. Em meio a uma dor
inumana e insuportável, entre a desonra e a injustiça, jamais se tinha
irradiado um amor tão celestial. E que amor nos deu o Senhor durante os
trabalhos forçados, sob a ameaça diária de morte, entre as lágrimas e a dor
infinita. Seu amor cobria todas as cruzes [...]
A
Morte era uma recompensa, como para as vítimas de outros campos. Fazia tempo
que ninguém mais temia a morte. Não costumávamos falar dela, pois para nós a
morte não existia em absoluto. Nós a vencemos. À meia noite se descobria uma
iconostase celestial com a magnitude do horizonte, os confins se abriam e
façanhas próprias de mártires eram executadas pelas pessoas comuns. Corriam
rios de sangue dos justos na terra:
Não
havia a quem se queixar. Os doentes morriam de disenteria sem contaminar
ninguém. As doenças alheias não importavam – bastavam as próprias. Muitos
acabavam loucos. Os que perdiam a cabeça eram juntados em uma sala e fuzilados.
[...] Os queimavam com cigarros, desmembravam os vivos, lhes arrancavam órgãos.
Lhes golpeavam a cabeça até saírem os sisos, os torturavam com fogo e carvão.
Experimentavam torturas psicológicas e drogas. Atroz era seu último suspiro,
mas um suspiro de júbilo, de alívio antes do passo final à eternidade.”
Em resumo, para o
Cátaro o Mundo é Solovki, o Calvário, a Ilha maldita das Lágrimas, subjugados
em todos os âmagos pela hierarquia infernal e terrena do Rei do Mundo. Aqui,
ele determina e edita as leis, e impõe os castigos a seu bel-prazer. Não há
possibilidades, antes do final, para os prisioneiros, é impossível tomar o
campo da mão dos guardas ou escapar com vida.
E no entanto, ao
invés da lamúria, o Cátaro pratica uma ação de guerra, de isolamento e cerco,
criando um microclima psicológico onde o medo da morte e a dor do sofrimento
são sublimados pela nostalgia da Origem espiritual perdida, e o sentido da vida
– o Sacrifício do Sangue para o grande Moloch – é re-signado e retransformado
em desejo de libertação e vitória contra a Morte.Tal ação por parte dos
Iniciados Perfeitos é um dever na guerra espiritual que travamos, e as Últimas
Gotas derramadas neste martírio serão a ÚNICA luz espiritual a alcançar os
tempos futuros.
O TERCEIRO MITO. NOSSO FUTURO. O
ÚLTIMO GRITO QUE CLAMARÁ À PARACLESE DIVINA A DESTRUIÇÃO DO MAL
“Assassino! Homem de
fogo!
Assassino! Eu vi os
olhos dos mortos em vida
É o mesmo jogo -
sobrevivência
A grande massa joga um
jogo de espera
Embalsamada,
invalidada, morrendo de medo da dor
Todo o senso de
liberdade se foi
Sol escuro num mundo
claro
Como ter um sol escuro
em um mundo claro
Eu tenho um filho, o
nome dele é Éden
É o direito dele, além
do tempo alienado
Dê-me 69 anos, outra
passagem neste inferno
É tudo sexo e morte,
tão longe quanto se possa dizer
Como Prometeu estamos
presos,
Acorrentados nesta
rocha de um admirável mundo novo
O nosso lote maldito
E eu sinto que é tudo
que nós sempre precisamos saber
Até que mundos acabem e
os mares congelem
Dê-me 69 anos, outra
passagem neste inferno
Há sexo e morte nos
planos da mãe natureza
Como Prometeu estamos
presos,
Acorrentados nesta
rocha de um admirável mundo novo
O nosso lote maldito”
(Brendan Perry, “Black
Sun”)
Aprendemos
dos nossos predecessores maniqueus e mazdeístas que o reino de Satanás que
engloba este mundo é um campo de batalha entre duas qualidades de Éons: os
Arcontes que contribuem com o aprisionamento do Espírito no mundo, e os
Luminares de Kristos Luz que se dedicaram a salvar a nós, seus irmãos e iguais,
das garras do demônio.
Os Luminares e Éons
se propuseram desde o princípio a lutar pela libertação do mundo, porém nós os
traímos: enfeitiçados, decerto, pelo feitiço de Yaldabaoth que nos privou de
nossa Epinoia, nos acostumamos com a vida no mundo e perdemos a vontade de nos
libertar. Tudo o que o exército furioso do Deus Incognoscível aguarda é um
sinal dos homens, exigindo sua herança divina, exigindo a libertação desse
mundo maligno do qual os homens sentiram nojo depois de vê-lo tal qual é.
Os Éons aguardam o
Último Grito, que reunirá milhares, milhões de angustiados clamando com todas
as suas forças pela Paraclese do Deus Incognoscível, pela sua intervenção
direta em nome da interdição do Maligno, e da destruição definitiva do Mal. O
Último Grito clamará a destruição desse mundo e nossa restauração como
Espíritos Eternos no Pleroma.
Sabemos que a
Tirania de Ferro do Povo Eleito de Jehova-Satanas ainda está se formando,
avançada mas não completa. Uma distopia à la Orwell, Huxley, Kafka ou Lovecraft
são apenas frações do horror para o qual caminhamos. O objetivo é oferecer a
máxima quantidade de sangue em oferenda ao deus deste mundo, que se compraz e
alimenta do sofrimento. E ainda há muito o que fazer para tornar a vida mais
miserável.
E enquanto o
sofrimento abate a imensa massa das pessoas, em raros casos ocorre que a
própria brutalidade da vida desperte indivíduos contra ela; indivíduos
espiritualmente puros, porém sem ter ideia do porquê da realidade mundana, nem noção
do que fazer a respeito. Para estes, nós faremos a Verdade chegar através dos
Khairé. Conhecerão a verdade, e quererão agir de alguma forma, e então lhes
instruiremos.
Daí a missão dos
Cátaros nessa era ser bem específica; mais ainda,constitui um dos três mitos
fundadores, na qualidade de declaração da missão à qual fomos chamados, como
cátaros.
Não nos oporemos
material e politicamente à hierarquia de demônios que já prevalece no mundo,
mas manteremos vigília nas sombras, onde se cumprirá nossa real mssão:
Devemos acompanhar
o Inimigo fechar o cerco e prestarmos atenção às pessoas. Devemos incitar e
provocar as pessoas para que vejam a realidade maligna do mundo e sintam nojo e
desprezo; devemos localizar as pessoas que reagem aos tempos com seu potencial
espiritual e, se estas permitem, instruí-las nos Mistérios e somar sua voz ao
Último Grito.
Localizando e preparando as pessoas com maior potencial espiritual, nossa
missão é aguardar a máxima potência das Sombras do inferno. Quando a criação
material atingir seu ponto máximo de horror e sadismo, devemos empregar o
Último Grito clamando pela Paraclese do Incognoscível, trazendo o exército
furioso de Kristos sobre o mundo para varrer céus e terra e nos libertar a
todos pela morte da matéria e pela restauração do Espírito plenipotente e puro.